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Tópico VI - Brasil Mundo: Outros Sentidos de Espaço-Lugar

Vamos fazer uso de outra linguagem artística para reforçar o que estamos aqui apontando. Comecemos com uma música instauradora de nosso espírito de identidade brasileira: o Hino Nacional.

O hino foi composto por Francisco Manuel da Silva para ser tocado na volta de Dom Pedro I para Portugal em 1831. Sua letra foi incorporada em 1909 por Joaquim Osório Duque Estrada, mas sofreu adaptações e mudanças conforme o Estado-Nação ia se atualizando em suas funções e formas espaciais.

O hino, portanto, reflete muito a instabilidade e as transformações do lugar. Apesar de ser a música oficial que expressa a grandiosidade da terra e do valor de seu povo, as profundas desigualdades sociais e o grande contingente de negados e de estrangeiros que aqui vieram tensionam sempre essa tentativa de fixar a identidade territorial.

Agora, comparemos essa música com outra, um samba enredo que também visa demonstrar a unidade do povo brasileiro a partir da diversidade de sua paisagem. Veja a letra da música Aquarela Brasileira, feita em 1964 por Silas de Oliveira e cantada por Roberto Ribeiro.

 

 

O hino nacional começa com a imagem fundadora do Brasil independente: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”, passa pela grandiosidade de sua terra: “Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso” e caminha para focar a coragem de seu povo na luta pela sua integridade territorial: “Verás que um filho teu não foge à luta, Nem teme, quem te adora a própria morte.”

A visão é de uma evolução linear do tempo que gera esse lugar fechado e acabado chamado Brasil. Na música Aquarela brasileira a letra não caminha para essa visão histórica a demarcar o sentido heroico do povo que vive nesse lugar. A música foca a diversidade paisagística dos vários locais que formam o Brasil. Começa apresentando que o Brasil é um cenário que o sonho do artista vai pintar: “Vejam esta maravilha de cenário [...] Que o artista num sonho genial [...] Será a tela do Brasil em forma de aquarela”. Em seguida, passa a descrever cada uma das regiões a partir de sua característica paisagística mais presente, tanto em sua expressão natural quanto de relevância da cultura local: “[...] Passeando pelas cercanias do Amazonas […] Conheci vastos seringais”, e caminha para formar a unidade dessa diversidade paisagística: “Brasil, essas nossas verdes matas... este lindo céu azul de anil emolduram em aquarela o meu Brasil”.

 

É certo que essa música foi feita justamente quando as tensões políticas no Brasil se radicalizavam, portanto, tinha que se ter uma imagem de unidade territorial não apenas a partir de uma visão oficial e autoritária mas também vinda das raízes populares, como é o samba.

Contudo, essa música reproduz o mesmo sentido de lugar como uma superfície fechada, cujo sentido identitário já se encontra definido, apenas ocorrendo sobre o lugar suas diversidades em cada porção do território. No final, todos somos uma coisa chamada Brasil, fruto de nossas belezas naturais e riqueza cultural. Mas vejamos outra música, mais contemporânea ao Brasil urbano e múltiplo que atualmente acontece. Acessem ao vídeo do funk Isso é Brasil, do MC Garden.

Essa música já é a expressão de outro estilo vivenciado, criado e consumido pelas classes populares do Brasil, tirando do samba o privilégio que a elite cultural tentou fixar como a forma verdadeira da música popular.

O funk é um estilo que vem das novas favelas e comunidades que proliferam no Rio de Janeiro e em São Paulo, e caminham para as cidades médias do Brasil afora. A música Isso é Brasil fala do tempo de agora e inicia fazendo referência ao deputado que defende o preconceito e a mercadorização da fé: “Como é que vocês querem ser feliz esse ano. Deixando a responsa com Feliciano”.

 

Depois de criticar os que se iludem com a mercadorização da fé, aponta para o perigo de esse preconceito se desdobrar combatendo a lei que trata da violência contra a mulher:  “Daqui a pouco vão tacar mais lenha. Querer acabar com a lei Maria da Penha”. Destaca que o problema maior é o da exploração do outro, como dos bolivianos: “Brasileiro quer ser mais malandro, explorando os bolivianos”. Ataca os governantes com suas políticas que não investem na educação: “nossos governadores não investem na educação pra não ter uma geração de pensadores”.

A letra da música critica a falta de investimento na saúde, na segurança e no transporte público, o aumento da violência contra os índios e os vários fenômenos que formam esse lugar. O funk Isso é Brasil apresenta várias imagens da forma espacial como o Brasil acontece.É um lugar agenciador de territórios, de fenômenos vários, cada qual regionalizando suas múltiplas histórias, que se desdobram, atualizando-se no sentido diferenciado de lugar. Essa letra tensiona as duas músicas anteriores, por rasurar o sentido de uniformidade territorial almejada pelo Estado quanto às várias paisagens que se depositam nos locais que formam a unidade da nação.

 

“Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil.” (DUQUE ESTRADA, 1909)

“Brasil, essas nossas verdes matas... este lindo céu azul de anil emolduram em aquarela o meu Brasil.” (RIBEIRO, 1964)

“Problema ta lá no nordeste. Tá aqui em São Paulo e também tá no Rio. Isso é Brasil.” (MC GARDEN, 2013)

 

As diferenças dessas três canções se encontram no nível de complexidade cada vez maior com que o sentido de espaço Brasil é apresentado, pois o lugar em que cada uma das músicas foi elaborada expressa um forma espacial específica: o lugar das elites brancas; o lugar das periferias rurais e urbanas do Brasil mestiço; o lugar marginal do vários grupos sociais num país urbano. São, portanto, diferentes paisagens e expressarem formas espaciais distintas do território brasileiro. Contudo, todas buscam uma identidade territorial, isso que é comum nelas.

Vejamos agora uma música a partir de outro ponto do território, delineando outra região do problema da identidade territorial.

 


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