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Tópico VI - Brasil Mundo: Outros Sentidos de Espaço-Lugar

Da fronteira para o contexto múltiplo do lugar Brasil, passemos a abordar algumas pinturas que almejam estabelecer uma imagem fixa desse território.

Veja o famoso quadro A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles:

A forma épica da ação ali registrada, não só pelo tamanho do quadro quanto pela composição das cores e os gestos dos vários grupos de personagens, visa registrar o ato simbólico de nascimento de uma nação.

A distribuição dos grupos de personagens, portugueses de um lado, indígenas de outro. O foco da ação ao centro, nos padres e na cruz. O gestual de cada grupo de personagens: padres curvados de forma dramática, portugueses ao fundo, vindos da praia, estão sérios e expressando fervor religioso, indígenas ao redor, demonstrando curiosidade e benevolência. 

É a harmonia de um encontro que construirá um território feito pela ação do colonizador europeu em meio à amabilidade dos nativos, transformando a beleza e a enormidade dos recursos naturais em fonte de riqueza para todos que assim aceitarem esse novo mundo. Esse quadro foi pintado na Europa em 1860, visando atender aos interesses do império em consolidar a imagem do Estado-Nação que ainda estava a se construir. A imagem visa comprovar esse momento fundador que no futuro se efetivaria num lugar chamado Brasil, território formado por brancos e índios – os negros não eram considerados –, um lugar rico e de grande futuro.

Delimita-se, assim, o sentido de identidade do território, uniformizando, em sua origem, os elementos sígnicos que o constituíram após a independência. Contudo, mesmo sendo uma arte que visa atender aos sentidos uniformizadores de identidade territorial, por ser arte, sempre instaura pontos de fuga em relação a essa linguagem maior

Veja no canto superior esquerdo do quadro uma palmeira de coqueiro.

coqueiro não é uma planta nativa do Brasil. Ele só foi introduzido no país a partir de 1553; portanto, não existia em nossas praias na época da primeira missa.

A primeira missa no Brasil (1861), pintura de Victor Meirelles

Mas, na época em que o quadro foi pintado, já era recorrente em nosso litoral, isso faz do quadro um elemento revelador em que a ideia de identidade é uma construção idealizada pela elite política, econômica e cultural. Essa elite, fortemente vinculada ao Estado, delimita e tenta fixar aquilo que elege como genuinamente “nosso”, deixando de fora toda a multiplicidade diferenciada das várias temporalidades dos fenômenos que formam a espacialidade do lugar.

Se no quadro omite-se a presença dos negros na construção desse território, isso reforça ainda mais o paradoxo do coqueiro como algo que simboliza nossa identidade paisagística. O coqueiro e tudo que está de fora do quadro, mas nele reverbera com suas ausências, provocam derivas nesse sentido artificial de se determinar uma imagem fundadora e fixa da forma espacial do Brasil.

O Brasil é muito mais complexo, múltiplo e diferenciado do que se tenta uniformizá-lo em nome da eficiência administrativa do território ou de elaboração de unidade encerrada nos limites fronteiriços. Comparemos esse quadro com outro nele inspirado: A primeira missa, de Cândido Portinari.

 

 

 A primeira missa no Brasil (1948), pintura de Candido Portinari  

Veja que, esse quadro, pintado no Brasil em 1948, segue a referência temática do anterior, mas, por usar um novo estilo pictórico, permite outros perceptos instauradores de novos sentidos interpretativos. Portinari geometriza o ambiente e as pessoas que ali se encontram.

 

Os detalhes da riqueza vegetal não existem aqui, é como se o quadro estivesse voltado para o futuro urbano e industrial do Brasil e não para seu passado fundador. O mais interessante é que, no quadro de Portinari, os indígenas sumiram, praticamente só vemos membros do clero e das forças militares assistindo à tomada de posse da nova terra. Um Brasil de poucos e para poucos, em que a Igreja e a força militar definiram as raízes de um Estado que delimita o sentido de território e de identidade do lugar.

Mas, para ampliar ainda mais a discussão da imagem do Brasil, podemos comparar esses dois quadros com uma série de cartazes, criadas pelo artista Evandro Siol, que estabelecem os muitos sentidos imagéticos derivados de trechos das letras de músicas rap.

O artista, Evandro Siol, ao elaborar essa intervenção artística, afirmou que a escolha foi pessoal, mas alguns conhecidos também participaram votando e escolhendo frases. Siol trabalhou com uma técnica específica de fazer cartazes baratos e passíveis de serem colocados nos muros da cidade.

 

 

Dessas frases podemos agenciar outros sentidos para o Brasil de agora, urbano, industrial e múltiplo. Se Portinari questionava a ideia de Brasil como lugar harmônico presente na primeira missa de Meirelles, os cartazes de Siol apresentam a diferença gritante dos que foram negados no primeiro quadro, assim como todos os que estão de fora no segundo. 

Frases como a do cartaz “se Marx fosse do Brasil escreveria que a revolução seria com Sig Sauer” são ótimos exemplos de como as inovações tecnológicas são recriadas pelo devir menor dos que se encontram marginalizados no mundo.

A famosa indústria de armas Sig Sauer acaba sendo introduzida como se fosse um cartaz publicitário da indústria bélica, mas que se volta contra os privilegiados dessa sociedade injusta e discriminatória.

Na interação entre esses três conjuntos de quadros, as imagens que deles se desdobram nos afetam em direção a novos pensamentos sobre o que vem a ser esse lugar Brasil, esse lugar não acabado, que não cabe em uma definição, pois os múltiplos fenômenos que aqui se encontram estabelecem a diferencialidade de histórias que se desdobram na forma espacial dinâmica e em tensão.


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