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Tópico IV - Natureza e Ambiente: Perspectiva Geográfica

A tradição do pensamento ocidental tende a pegar tudo que está externo ao sujeito pensante como um objeto do pensamento. Para desvendar a verdade do objeto, ele deve ser mensurado, nomeado, classificado, colocado numa hierarquia e numa linearidade evolutiva. Assim, a representação que esse tipo de pensamento faz do objeto consegue fixá-lo em uma conceituação, tornando-o passível de controle, seja para ser explorado, seja para ser protegido.

Dessa forma, uma rocha pode ser entendida em sua funcionalidade para os interesses humanos, mas uma rocha é bem mais que isso para aqueles que exercitam outras formas de pensar, ou seja, pensamentos que não se restringem à mera racionalização intelectualista pautada na cisão sujeito/objeto.


Podemos exemplificar isso com a famosa rocha de Uluru, na Austrália:

Rocha de Uluru, Austrália.

Para o pensamento científico ocidental, Uluru é a denominação dada pelos nativos aborígenes australianos a um monólito de arenito com feldspato. Possui mais de 300 m de altura, 9 km de circunferência e 2,5 km abaixo do nível do solo. Está localizado no centro-norte da Austrália, pertence aos aborígenes Anangu e faz parte do Parque Nacional de Uluru-Kata Tjuta.

Para o pensamento ocidental não científico, mas que também se pauta na mesma lógica da cisão entre sujeito (relações humanas) e objeto (natureza), Uluru toma contornos em que se agregam valores culturais e econômicos, pois pode significar tanto um bem simbólico da população nativa quanto uma atração turística para estrangeiros. O sentido, portanto, que Uluru vai adquirindo para o pensamento ocidental faz derivar a conceituação científica.

Em ambos os exemplos, é a cisão sujeito/objeto que torna possível ao pensamento, a partir dos desejos do sujeito, fixar o objeto numa representação. O pensamento, dessa forma, faz do objeto algo passível de controle e uso (econômico e/ou religioso).

No entanto, se para o pensamento ocidental a rocha é uma coisa inorgânica e só toma sentido quando expressa alguma utilidade, para os sujeitos Anangu, Uluru é vida, é devir natureza, é um conjunto de perceptos não cabíveis em pensamentos racionalizantes, impossível de ser fixado em imagens conceituais, não é algo acabado, é o próprio movimento do mundo a se multiplicar e se desdobrar rizomaticamente como vida. Por isso, essa forma de pensar não cabe em palavras, mas é sensível, é sentida enquanto vida.

 

Mas, veja bem, esse aspecto vital de uma rocha imanente ao devir não humano do homem é algo semelhante ao que todos nós sentimos frente a certos objetos carregados de sensações. Pensem, por exemplo, numa fotografia de sua infância, ou num anel de seu avô que agora você usa. Essa foto e esse anel não são apenas objetos passíveis de serem classificados, denominados e usados desta ou daquela forma. Essas coisas inorgânicas tomam a força de sensações, de memórias que afetam sua existência. Não são meros objetos que você usa, mas são vitais para sua existência, representam a articulação espacial de seu ser com as temporalidades passadas e que perduram até hoje.

É a história de sua família – de seus avós, de seus pais, de você e de seus filhos – que ali se articula. Estabelecendo o território de existência, não há como conceituar racionalmente a lógica disso, mas todos sentimos do que se trata. É outra forma de pensar, pura faculdade de sentir. É a “vida inorgânica das coisas”, pois são coisas não orgânicas que afetam e permitem que a vida se oriente no contexto em que acontece .

É algo próximo a isso que Uluru significa para os Anangu, assim, a rocha Uluru não se restringe a ser um arenito cuja formação se atém aos processos geológicos da Terra, mas também não se circunscreve a ser um objeto cuja qualidade advém de elementos transcendentais à vida dos homens, como imagem de beleza natural ou sua mística espiritual. Uluru é rocha enquanto vida imanente a tudo e a todos e todas, pois é nela que os aborígenes australianos se localizam na espacialidade de suas existências.

Eis o aspecto que, aqui, destacamos do pensamento deleuziano para o entendimento de natureza como devir não humano do homem.

 

 

O mais interessante disso é que todo ser humano pratica essa forma sensível de pensar, mas, apesar dos perceptos permitirem a sensação desses fatos e fenômenos, não consegue falar racionalmente sobre eles. Por não caber no contexto da racionalidade intelectual, não é possível de comunicar apenas pela lógica da palavra, daí a tradição ocidental do pensamento não valorizar ou ignorar essas outras formas de pensar rizomaticamente a imanência da vida como devir natureza.

Então, como buscar estabelecer sentidos para essas experiências vitais?

 

Nesse questionamento, encontramos a defesa da arte como uma criação humana que, ao estabelecer os sentidos não humanos de devir, permite que experimentemos outras sensações que nos afetam e nos instigam a melhor nos orientarmos no mundo.

Deleuze, ao estabelecer o sentido das artes e do artista, postula:

''O artista é o mostrador de afetos, o inventor de afetos, o criador de afetos, em relação com os perceptos ou as visões que ele nos dá. E não é só na sua obra que ele os cria. Ele também nos dá afetos e faz-nos devir com eles [...]. A arte é a linguagem das sensações, que o artista passa pelas palavras, pelas cores, pelos sons e pelas pedras.'' (DELEUZE apud NABAIS, 2009, p. 117).

Pela arte podemos devir nas coisas que nos afetam, pois ela instiga sensações e nos força a pensar em como nos localizamos no mundo, como nos orientamos no contexto em que a vida acontece. Daí a importância para inúmeras culturas de musicar suas histórias, de dançar suas lendas, de pintar seus personagens etc., para, assim, manifestar os sentidos espaço-temporais de suas vidas.


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