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Tópico III - Linguagem cartográfica numa perspectiva geográfica: O que vem a ser isso?

Um mapa sempre será lido conforme os interesses do grupo social que faz uso dele. Ler o que falta, projetar as dinâmicas espaciais que nele estão fixas ou ausentes conferem-lhe seu sentido geográfico. A geografia está, pois, além do mapa. Tal afirmação pode ser mais bem entendida fazendo-se uso da arte e da linguagem literária. Assim, vamos usar uma passagem do livro Terras sem mapa, do uruguaio, crítico e estudioso da cultura latino-americana, Ángel Rama. Nessa novela, Rama ficcionaliza a infância de sua mãe no interior da região da Galícia, nas primeiras décadas do século XX, na Espanha. No último capítulo, intitulado Adeus, lembra que, quando ele era criança, no Uruguai, buscava num atlas a localização da vila em que sua mãe morava:

"Um dia, pus um minucioso mapa sobre seus joelhos para que seu indicador com a unha áspera o percorresse, mostrando-me os povoados, os campos e rios de que me falava. Mas levantando os olhos sobressaltados por cima da armação de seus óculos de casco de tartaruga, disse: 'Não, não é assim. Olhe, o moinho está indo para o lado de Seaya, e o rio corre...'. E fechou o atlas para não o abrir mais. Imaginei essa terra como ela o fazia: precisa na memória e profundamente querida, e ao fazê-la minha como uma lembrança algo mais distante, convenci-me de que nenhum mapa poderia contê-la" (RAMA, 2008, p. 138).

O que o personagem desejava de localização sua mãe não tinha como indicar, pois, para ela, o lugar era a própria vida em processo e não cabia na fixação de uma escala cartográfica. A geografia da Galícia estava além do mapa que representava o lugar; contudo, para o autor, foi a partir do que o personagem tinha como representação cartográfica que a tensão com as memórias da vivência de sua mãe tornou-lhe possível pensar o que não estava no mapa. A partir do seu desejo projetado no mapa, as derivas, as linhas de fuga, as possibilidades de sentidos outros tornam-se possíveis. O mapa, enquanto representação científica maior, é fundamental para o nosso processo de leitura do imaginário espacial do mundo,  mas muitas vezes não é suficiente para dar conta da dinâmica multiplicidade da vida.

Para a linguagem geográfica, a questão é saber como podemos recriar os sentidos fixados na representação do mapa em acordo com os interesses em jogo. O mapa, portanto, não é neutro, mas uma força em pensamento, e precisa ser abordado conforme aquilo que se quer produzir de sentidos espaciais.

Voltemos ao texto Mapas desejantes: uma agenda para a cartografia geográfica para abordar algumas das cenas do contato com mapas. As cenas indicam diferentes encontros com mapas e como eles acabam contribuindo para passar uma ideia de verdade territorial que muitas vezes não vivenciamos ou ignoramos.

 


 

No caso do mapa das artes em São Paulo, por exemplo, a periferia é excluída e, assim, define-se o que é a cidade e para quem.

"A maior latência desse discurso territorial sobre a arte é a exclusão da periferia. O mapa não acessa esse conteúdo social, exclui-o, e ao fazer isso define seu público, além de agir [...] no estabelecimento do que é o lugar [...]" (GIRARDI, 2009, p. 154).

Já no caso do taxista, temos o deslocamento dos referenciais geográficos para o aporte tecnológico que privilegia o tempo e o distanciamento da vivência em relação ao mundo.

"Também aqui há uma transferência: a da mediação das relações sociais. Não há história, não há a vivência/experiência da paisagem e dos problemas da metrópole. A tecnologia baliza o possível [...] há mais o tempo que o espaço." (GIRARDI, 2009, p. 155).

Outro exemplo apresentado no artigo de Girardi é o mapa da região do Sossego. Nesse caso, a população que vivencia essa territorialidade definiu referenciais geográficos próprios, os quais não correspondem com o mapa oficial do correio, outra tensão entre a dinâmica espacial da vida e o rigor fixo da representação científica.

"O mapa do Sossego é exemplar do descolamento que há entre a captura do território pela oficialidade para seu domínio e a construção cotidiana dos territórios [...]. A territorialidade construída pela história das famílias e seus modos de apropriação da natureza, sua organização social, é ausente no mapa topográfico [...]" (GIRARDI, 2009, p. 155). 

Vale destacar também o caso das crianças que criticaram a ausência de sua pequena cidade na escala do mapa da região Sudeste. Verifica-se outro momento de tensão entre o oficial, maior, e o sentido dos devires menores da geografia cotidiana, tanto pelo aspecto político, destacado no texto, do poder da escala que exclui os elementos considerados menores – daí o peso ideológico da rigidez hierárquica da representação cartográfica – quanto pelo aspecto disciplinador e controlador da educação maior em querer reprimir processos criativos ou subversivos à ordem instituída, no caso, rasurar os atlas da biblioteca para colocar a cidade no mapa.

"Que autonomia se pode ter para reescrever um "documento"? [...] Neste caso, grafar no mapa a cidade ausente seria dar mais sentido, maior importância, intensidade, àquilo que era somente um documento de acervo." (GIRARDI, 2009, p. 156).

A partir desses quatro casos, reafirmamos que mapa não é algo neutro, meramente técnico a fixar informações de distribuição de fenômenos numa determinada escala de representação, os mapas dizem muito, tanto pelo que apresentam quanto por aquilo que está fora da sua representação. Portanto, propõe-se que o professor de Geografia busque leituras mais críticas para dinamizar espacialmente os mapas pautados nos referenciais científicos maiores e também procure os devires menores para que as pessoas criem outras formas de elaboração de mapas, sendo imprescindível, para isso, o contato com as artes e os novos recursos tecnológicos.

Estamos diante, portanto, para o sentido da leitura geográfica da cartografia, de duas linhas de atuação.

 

Vamos exercitar uma primeira linha de atuação: buscar leituras mais críticas para dinamizar espacialmente os mapas pautados nos referenciais científicos maiores.

Convidamos você a fazer as leituras indicadas. Boa leitura!

 

Linhas imaginárias na cartografia: a invenção do primeiro meridiano (Jörn Seemann).

O mapa do Brasil não é o Brasil (Jorge Luiz Barcellos da Silva e Nestor André Kaercher).

Mapas cognitivos do mundo: representações mentais distorcidas? (José Q. Pinheiro).

 

Após as leituras, gostaríamos que você refletisse suas compreensões sobre a abordagem dos diferentes autores. Caso seja necessário, tire suas dúvidas buscando na internet mais esclarecimentos. Também disponibilizamos aqui alguns links para maiores esclarecimentos, acesse. Voltaremos na segunda parte deste tópico com a abordagem de certas passagens desses textos. Bom trabalho!


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