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Tópico III - Linguagem cartográfica numa perspectiva geográfica: O que vem a ser isso?

Vamos destacar algumas passagens do artigo de Girardi (2009), cuja leitura foi sugerida na página anterior, para pontuar melhor o que aqui estamos propondo como sentido geográfico da cartografia.  O texto começa destacando a função do mapa como um registro gráfico que "[...] facilita a compreensão espacial de objetos, conceitos, condições, processos e fatos do mundo humano" (HARLEY, 1991 apud GIRARDI, 2009, p. 148).

Eis uma definição bem ampla e plausível para a nossa necessidade de mapas, ou seja, para termos uma visão da distribuição das formas dos fenômenos no território.

Contudo, diante do apuro técnico e matemático com que se elaboram atualmente as representações cartográficas, ocorrem conflitos e encontros entre o desejo do cartógrafo de tudo representar com exatidão, o do usuário de ler e se orientar no que está sendo representado, e o do próprio mapa de poder expressar a dinâmica com que o espaço acontece. Assim, devemos:

"[...] analisar esses mapas da geografia real por meio do desejo: o desejo do cartógrafo, o desejo do usuário e as possibilidades de o mapa, ele mesmo, ser um objeto desejante" (GIRARDI, 2009, p. 148).

E aí, entenderam o texto?

Comunicação da informação cartográfica

Fonte: Kolácny (1967) apud Girardi (2009, p. 152).

Eis a tensão que ocorre entre a dinâmica espacial do mundo, sua representação numa dada escala no mapa e a capacidade do usuário de qualificar a informação cartográfica, no sentido de melhor orientar-se no mundo. Veja o fluxograma, a partir dele é possível identificar esses diferentes desejos em jogo e perceber que mapas sempre serão um produto limitado em sua capacidade de representar o todo espacial do fenômeno. Isto é, entre aquilo que é a realidade do cartógrafo e que está em sua mente e aquilo que é a realidade do usuário e que está em sua mente. Assim, entre o todo da realidade e a parte comum à realidade do cartógrafo e a do usuário, temos a maior parte de espaço não representado. É tudo isso que está de fora da representação cartográfica que não garante que o desejo do cartógrafo seja plenamente efetivado pelo usuário quando este lê um mapa sobre um dado fenômeno da realidade.

 

Peguemos um exemplo para ilustrar essa afirmação. Vejam o mapa que apresenta a distribuição de hospitais públicos na Grande São Paulo.

Ele demonstra claramente que há uma concentração de hospitais nas áreas mais próximas ao centro da região. Nas bordas e nas áreas mais afastadas do sul, norte e leste, há uma sensível diminuição. Para a população que mora nessas áreas periféricas, significa que o acesso ao tratamento hospitalar fica complicado em razão do número menor de leitos e de profissionais e da distância maior a ser percorrida para se ter acesso ao atendimento.

 

Mas esse mapa não explicita a informação sobre a desigual dinâmica social do acesso à saúde. Isso é uma coisa que está fora do que nele é representado.

 

 

Quem lê o mapa deve projetar tais processos a partir de experiências espaciais com o que nele é representado. Peguemos a questão dos médicos e enfermeiros, que também estão fora dessa representação, mas com ela se relacionam diretamente. Como existe uma grande concentração populacional e de veículos em determinados locais dessa região e, paralelo a isso, a precarização dos meios de transportes públicos, muitos médicos e enfermeiros, assim como demais trabalhadores da rede hospitalar, preferem morar próximos ao local de serviço.


Isso significa que uma política pública visando aumentar o número de hospitais nas áreas mais carentes poderá redundar em uma deficiência de mão de obra qualificada, visto que muitos profissionais dessa área podem recusar o trabalho nesses locais devido ao deslocamento em grandes e congestionados trajetos para atuar em áreas periféricas consideradas violentas e de pouca infraestrutura. Esses elementos não aparecem no mapa e não há como representá-los de forma fixa no plano cartográfico. A representação cartográfica não dá, portanto, conta de toda a dinâmica espacial, mas o que ela apresenta depende muito da forma como vai ser lida pelo usuário: o Estado pode ler o mapa dos hospitais e desejar uma redistribuição espacial deles; a população de bairros carentes pode fazer uso do mapa para fundamentar os processos de organização política e de reivindicações pela melhoria da qualidade de vida.


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