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Tópico III - Linguagem cartográfica numa perspectiva geográfica: O que vem a ser isso?

PARTE A

 

Para melhor elucidar o uso da cartografia, utilizaremos a história A trágica história do Dr. Fausto, escrita por Christopher Marlowe e publicada em 1604, na Inglaterra. A história da peça de Marlowe retrata o pacto que um jovem médico faz com o demônio Mefistófeles em prol de uma realização pessoal e de solução dos graves problemas do mundo. Estamos no fim do Renascimento, e as forças econômicas, políticas e culturais da sociedade capitalista, urbana e de inovação científico-tecnológica estão territorializando-se.

Os elementos da tradição mística medieval (representada pelo demônio) se chocam com a crença na razão científica (o médico Fausto), desdobrando-se num mundo em que o individualismo e a soberba humana conflitam com os valores que estão além do racionalismo em si. Fausto representa a vontade do homem moderno de, por meio do emprego rigoroso da razão, poder tudo denominar, catalogar, localizar e controlar. Por isso ele pergunta a Mefistófeles onde fica o inferno. Ele quer uma relação precisa das coordenadas matemáticas e camadas geológicas para representar com exatidão o lugar.


O demônio, todavia, com a expressão imemorial do desconhecido, do caos impossível de controle e ordem, responde: “o inferno não tem limites, não se localiza num só lugar; porque o inferno é onde estamos [...]”. O espaço desejado por Fausto é o da ciência maior. Ele quer localizar, conhecer, mensurar, classificar, ordenar, hierarquizar tudo e, assim, organizar a vida; todavia, o espaço apontado por Mefistófeles é o da vida, com sua multiplicidade e mobilidade em constante diferenciação. É o espaço dos devires minoritários, das linhas de fuga, das tensões, dos conflitos e da criação do inusitado. O espaço de Mefisto não é passível de ser apenas o fixado em representação cartográfica por meio da hierarquia rígida de escalas e proporções matemáticas.

No espaço da vida, Fausto tem que criar outras formas de mapear o mundo, para, assim, poder melhor se orientar. A obra de Marlowe é um cânone da literatura universal, ou seja, da literatura maior, no entanto, podemos derivar dela a força da arte na instauração de devires minoritários para a linguagem científica. A metáfora do inferno, enquanto um lugar em que a vida acontece, provoca rasuras no sentido maior de lugar como um local no qual as coisas ocorrem, de um lugar com extensão mensurável, no qual as coisas são precisamente localizadas, para um lugar que só acontece enquanto mobilidade e multiplicidade da vida.

A espacialidade, assim pensada/vivida, deseja outras formas de expressão, as quais vão além da representação cartográfica maior; deseja o sentido geográfico dessa cartografia, são mapas desejantes da dinâmica espacial, uma cartografia pós-representacional. Para deixar mais claras essas ideias, vamos ler o texto Mapas desejantes: uma agenda para a cartografia geográfica.



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